Já aqui temos falado das Habilitações do Santo Ofício como fontes muito importantes na pesquisa genealógica. Se é certo que os paroquiais nos permitem, de longe a longe, apreender alguns vislumbres da realidade daqueles tempos, é nas habilitações que encontramos as histórias de vida: as fatalidades, os embaraços pelos antepassados de infecta nação, a ambição a par do desespero perante o desvendar de vergônteas inconvenientes, as deslocações e ausências da terra natal, ecos de um império impossível, a ilegitimidade, a amizade e a rivalidade... enfim, todo um escrutinar de vidas, cujo propósito, com fins nada honrosos aos nossos olhos de hoje, gerou resmas de folhas que nos ajudam a escrever a história das nossas famílias para lá do mero acumular de nomes e parentescos.
Serve esta pequena reflexão de introdução à carta que aqui se partilha, do ano de 1695, transcrita de uma habilitação (com alguns arranjos para maior facilidade de leitura) onde nos é dada notícia das andanças de Sebastião Gonçalves e de sua mulher Verónica Dias, bisavós do remetente, vítimas da peste e exemplos da luta pela sobrevivência própria e da dos filhos. Nela encontram também a explicação da origem de um apelido.
Meu primo (…)
Já creio saberá V. Mercê como o Reverendo Dr. Provisor nas inquirições da habilitação (...), saiu com seu despacho pedindo faça declaração da origem do avô materno chamado Sebastião Gonçalves, e tirando informações (…) me informaram ser filho de Salvador Gonçalves e de sua mulher Verónica Dias moradores que foram (…) nas casas que ficam por cima das de Jerónimo de Magalhães na esquina da viela ou travessa que vai para a rua de Trás o Terreiro dos Padres Loios que são as que ficam contíguas às casas do dito Jerónimo de Magalhães e que nelas ficaram vivendo o dito Salvador Gonçalves pelo seu ofício de cabeiro, e que aí nascera o dito meu avô, e outra sua irmã Maria Ferreira que foi a mãe de Maria Carneira (…) isto antes que houvesse a peste nesta cidade que parece foi no ano de 1581 conforme o que achei nas sepulturas que estão fora do postigo de Santo António desta cidade, aonde dizem estão enterradas as pessoas que morreram de peste, e não consta houvesse desde então semelhante mal nesta cidade. O que suposto dizem que quando Salvador Gonçalves, antes que houvesse a peste e sendo então o dito Sebastião meu avô criança, o mandaram (…) para casa de seus irmãos que dizem eram sete irmãos moradores na rua do Bairro da dita freguesia (…), dos quais V. Mercê também procede, e a um dos ditos irmãos se chamava Cabeça de Leitão, donde procederam ao depois os Leitões ou Leitoas suas filhas. E que o motivo que houve para se chamarem ao depois de apelido dos Leitões foi porque como estivesse o dito irmão de Salvador Gonçalves doente de doença que foi necessário cortar o cabelo, indo à dita igreja rapado, lhe chamaram então as moças daquela freguesia Cabeça de Leitão. E que, como nesta cidade apertasse o dito mal da peste, se foram o dito Salvador Gonçalves e a dita Verónica Dias dela fugindo e levaram em sua companhia a dita Maria sua filha que ainda então criavam ao peito por ser criança; e que chegando à dita freguesia donde era natural, o dito seu irmão o não quis recolher com o pretexto e receio de que iam ferrados da peste e lhe fizeram uma barraca ou cabana no monte pegado à dita freguesia para lá viverem e lhe levavam de comer, e com efeito, indo o dito Salvador Gonçalves com sua mulher e filha para a dita cabana, sucedeu daí a dias morrer nela o dito Salvador Gonçalves, o qual sua mulher enterrou e para isso lhe deram mortalha acochada, e ficou a dita sua mulher vivendo alguns dias criando ao peito a dita sua filha Maria, até que sucedeu chegar aos termos de morrer e, sentindo-se desta sorte, pediu mortalha e se enterrou a si própria até aos peitos que deixou de fora para a dita criança neles mamar enquanto pudesse. E que sabendo-se desse desespero, fora o juiz, ou ouvidor, daquela terra e freguesia e tiraram a dita criança e, para se acabar de criar, apenaram e constrangeram uma mulher de leite a qual mandaram pôr em outra barraca ou cabana que para isso fizeram, e sucedeu escapar do dito mal a criança e mulher, e que a dita criança se criou ao depois na dita freguesia em casa dos ditos parentes, aonde era tratada por a menina do milagre em razão de ter escapado do dito mal de peste, até que veio a ser enamorada do morgado (…) que teve a dita filha (…) que veio a falecer religiosa no convento de Santa Clara desta cidade. E que tendo notícia disso o dito Sebastião Gonçalves, seu irmão e meu avô, que nesta cidade estava trabalhando de cabeiro, se foi à dita freguesia a buscar a dita irmã para a matar por se haver desonestado com o dito morgado que saiu com seus criados a impedi-lo, de que resultou brigas e pancadarias e houveram feridos e por essa causa a não tratou mais por irmã…