Habilitações a Cargos do Santo Ofício II

O Tribunal do Santo Ofício, simultâneamente régio e eclesiástico, foi criado em 1536 e extinto em 1821. Era coadjuvado pelo Conselho Geral, criado em 1569 pelo Cardeal D. Henrique. Ao Conselho Geral competia a apreciação e despacho das diligências de habilitação dos ministros e familiares do Santo Ofício. 

Carta de Familiar do Santo Ofício de Manuel Martins Silveiro - Câmara Eclesiástica do Arcebispado de Évora



Esta documentação encontra-se no Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), existindo ainda processos por digitalizar. Pode, no entanto, ser solicitada ao arquivo cópia digital de processos que eventualmente nos interessem e ainda não estejam disponíveis online. Cerca de um mês após ter sido efectuada a digitalização, os documentos são disponibilizados na página do arquivo, passando a estar acessíveis a todos.

Todos estes processos podem ser pesquisados no Repositório Histórico, onde tem vindo a ser feita a indexação dos mesmos.

Serviam este tribunal: Inquisidores, Deputados, Promotores, Notários, Qualificadores, Comissários, Meirinhos, Alcaides, Guardas, Porteiros, Solicitadores, Médicos, Cirurgiões, Barbeiros e Familiares.
A admissão destes Ministros e Familiares era precedida de um inquérito rigoroso à genealogia e à conduta cívica, moral e religiosa de cada habilitando, que deveriam estar de acordo com as qualidades exigidas pelo Regimento - instrumento normativo inspirado nas normas inquisitoriais espanholas, adaptado às características políticas, sociais e religiosas do país. 

Os habilitandos deviam saber ler e escrever, viver abastadamente, serem capazes de manter segredo sobre os negócios do Santo Ofício, aspecto de suma importância mas nem sempre respeitado, não possuírem infâmia alguma de facto e de direito, nem sangue de «infecta nação» (judeu, mourisco, negro ou cigano) ou culpas de judaísmo (a partir de 1774); não podiam exercer profissões consideradas infamantes e deviam ter capacidade reconhecida para o cargo.

No processo de habilitação, os candidatos, que tanto podiam ser nobres como plebeus, apresentavam as suas naturalidades, moradas, profissões e genealogias: quem eram os seus pais e avós, os cônjuges e respectiva parentela, eventuais filhos ilegítimos ou naturais, e outros parentes, sobretudo aqueles que possuíam cargos no Santo Ofício, nomeadamente Familiares. Os Familiares do Santo Ofício não podiam casar sem autorização do Conselho Geral. Quer fossem já admitidos ou ainda pretendentes, tinham de apresentar os mesmos dados relativos ao futuro cônjuge.

Decorria depois um processo de averiguação e confirmação, as chamadas Diligências, durante o qual eram recolhidos os depoimentos de testemunhas que conheciam bem os habilitandos e respectivos cônjuges, assim como as suas genealogias, vidas e costumes.

A familiatura era vista como um privilégio que conferia estatuto social aos seus possuidores. Com ela se provava a «pureza de sangue», pelo que não surpreende que fosse especialmente ambicionada pelos que padeciam de fama de cristã-novice, chegando alguns a gastar somas consideráveis com as despesas decorrentes das várias diligências solicitadas e das deslocações que faziam a Lisboa, onde por vezes tinham de permanecer vários meses. Note-se, no entanto, que «face ao detectado em milhares de habilitações, poder-se-á conjecturar que a mácula de cristã-novice não constituiu um óbice intransponível. O sucesso ou insucesso de razoável número de pretensões dependeu da inserção, ou não, desses habilitandos em redes de influência e cumplicidade» (Figueiroa Rego, 2009). Quem se ausentava para o Brasil, ou outras terras de além-mar, tinha também especial interesse nestas cartas que funcionavam como justificação da sua qualidade nas comunidades de destino.

As funções dos Familiares consistiam na prisão dos réus nas terras onde não existisse tribunal, ficando na sua posse as chaves das casas dos mesmos, na notificação das testemunhas que seriam ouvidas pela Inquisição, no acompanhamento dos presos nos dias dos autos-da-fé, entre outras. Além da carta de Familiar obtinham ainda uma insígnia, cuja ostentação estava restrita a ocasiões específicas, como, por exemplo, quando efectuavam prisões.

A abundância de dados genealógicos existente nestes processos, confere-lhes um especial interesse em Genealogia. O seu estudo permite, em inúmeros casos, conhecer ascendências impossíveis de descortinar noutro tipo de documentação, oferecendo-nos, por acréscimo, os retratos sociais e psicológicos dos habilitandos e das suas famílias.



Fontes:
Bruno LOPES - «Os Familiares do Santo Ofício de uma localidade do Sul de Portugal (Arraiolos): perfil social e recrutamento»
Eugénio CUNHA e FREITAS - «Familiares do Santo Ofício no Porto»
João FIGUEIROA REGO - «"A Honra alheia por um fio": os estatutos de limpeza de sangue nos espaços de expressão ibérica (sécs. XVI-XVIII)»
Arquivo Distrital de Évora - International Archives Day