Uma coisa e outra


Na semana passada, dei meu pitaco sobre os saques na Inglaterra. Não tenho credenciais "científicas", digamos assim, para tecer maiores julgamentos; não sou psicóloga nem socióloga, apenas uma observadora à distância, como a maioria de nós. Escrevi o que me parecia óbvio: "O que a publicidade nos apresenta como passaporte para a felicidade é, no seu avesso, o caminho para uma desilusão e uma frustração tão grandes que, um dia, podem explodir sem mais nem menos na rua."

No sábado, o jornal publicou uma ótima entrevista com Zygmunt Bauman, feita pelo Fernando Duarte, em Londres. Aos 85 anos, Bauman é considerado um dos sociólogos mais importantes do planeta. O que ele disse confirmou o que eu havia intuído: o quebra-quebra inglês foi o motim dos consumidores excluídos.

Não tenho a menor idéia de como podemos sair da roda-viva doentia do consumo, sobre a qual construímos a nossa economia, e da qual todos somos vítimas, em maior ou menor grau; mas é fundamental que algo se faça nesse sentido, ou estaremos condenados à infelicidade perpétua.

Bauman diz que, além disso, precisamos repensar a maneira como medimos o bem-estar:

"A busca da felicidade não deve ser atrelada a indicadores de riqueza, pois isso apenas resulta numa erosão do espírito comunitário em prol de competição e egoísmo. A prosperidade hoje em dia está sendo medida em termos de produção material, e isso só tende a criar mais problemas."

Nada mais verdadeiro. Andei pela Índia, país reconhecidamente pobre, e percebi muitos sinais de contentamento e alegria. No seu exato oposto, a Península Escandinava, que não podia ser mais rica e bem resolvida materialmente, notei muita cortesia, educação e gentileza, mas alegria é palavra que não consigo associar à região. Em nenhum dos casos, porém, me atreveria a falar em felicidade, sensação sutil e difícil de interpretar.

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Tenho, aliás, pensado muito sobre a felicidade, em parte pelas circunstâncias atuais da minha vida, em parte pelo fato de ter feito anos e recebido uma quantidade de votos simpáticos dos amigos, que me desejaram o que habitualmente se deseja aos aniversariantes: felicidade, paz, saúde, prosperidade, calorias que não engordam e assim por diante. 

Lendo as mensagens, me dei conta de que uma só palavra bastaria por todas as outras: felicidade, justamente. Impossível ser feliz sem um mínimo de saúde, de paz, de prosperidade e do que mais possa ser julgado essencial à vida, e que varia, naturalmente, de pessoa a pessoa. Afinal, este vago estado de espírito pressupõe o equilíbrio de todos os outros sentimentos e condições na travessia da corda bamba que nos leva do nada ao lugar nenhum. Desejar felicidade é, pois, desejar tudo.

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Quando era criança, adorava um jogo de tabuleiro chamado Careers, em que cada jogador escrevia num papelzinho a sua receita de sucesso. Ganhava quem atingisse primeiro a sua meta. A receita consistia de uma mistura de três ingredientes: fama, dinheiro, felicidade. Uma receita típica seria, por exemplo, 50 felicidades, 10 famas e 40 dinheiros. 

Parecia tão fácil! Ainda assim, a vida não deixa de ser uma espécie de Careers ao vivo, com uma quantidade substancialmente maior de ingredientes e combinações.

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Ando interessada em Lhasa, a capital do Tibete. Depois de ler um bocado, fui ao Google procurar umas fotos. Encontrei 2.440.000 – das quais pelo menos 2.439.000 de cachorrinhos. Entre essas milhares de fotos de Lhasa Apsos aparecem, aqui e ali, algumas tímidas imagens da Potala. E só. Grande decepção.

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Outra decepção: a iluminação do Cristo, inaugurada em março, que achei que alguém fosse consertar imediatamente. Achei errado. Pelo visto, as autoridades estão contentes com aqueles canhões de LEDs horrorosos, que de tão fortes apagam os detalhes da estátua. Visto de lado, o coitado do Cristo perdeu até a magia de flutuar misteriosamente: na montanha, logo atrás dele, enfileiram-se três refletores perfeitamente visíveis, que acabam com o mistério de vez. Um pavor.

Em compensação, o belo painel do Espaço Criança Esperança, no morro do Cantagalo, voltado para a Lagoa e inspirado em obra de Portinari, fica às escuras assim que anoitece. Faz sentido?

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Há filmes que nunca deveriam ser assistidos de novo. No fim-de-semana, sugeri aos amigos que vissemos "Curtindo a vida adoidado", o famoso Ferris Bueller's Day Off. Filmado em 1986, com um jovem Matthew Broderick no papel principal, ele era, na minha lembrança, um dos filmes mais divertidos de todos os tempos, quase no mesmo patamar de "Apertem os cintos, o piloto sumiu".

Todos adoraram a idéia; todos adoravam "Curtindo a vida adoidado". Chegamos a ficar com inveja da Heliana, que nunca tinha assistido o filme, pela experiência que ia viver.

Pizza e refrigerantes a postos, lá fomos nós. O filme começou. Passados dez minutos, a Heliana perguntou: "Vocês estão gostando?". Ligeiro murmúrio. Dez minutos depois: "Mas vocês estão gostando mesmo?" Murmúrios mais audíveis.

-- Era muito engraçado...

-- Eu me diverti demais quando assisti...

Mais dez minutos: "Vocês juram que achavam este filme engraçado?!"

-- Era engraçado sim...

-- Era outra época...

O Tom se lembrava até da cena da parada.

Desistimos no meio. Ainda demos um fast forward para que o Tom conferisse a tal cena, mas nem isso se salvava. Arrasados com o enterro da nossa última quimera, mudamos para "Human Planet", documentário da BBC, e fomos felizes para sempre, até o fim do último DVD.

(O Globo, Segundo Caderno, 18.8.2011)