Entre a alta costura, aventuras e tablets


(Fotos de Monica Imbuzeiro)

O nome de Marcella Virzi devia ser mais conhecido do que é. O problema é que, tendo nascido e optado por viver numa cidade em que jeans e camiseta (limpa) são considerados esporte fino, ela dedica-se, com invulgar talento e grande entusiasmo, a criar roupas dignas de casamentos reais, cheias de transparências inusitadas, bordados elegantes e brilhos caprichadíssimos.

-- O meu talento é esse, -- observa, às vésperas de começar a vender em São Paulo, resignada com o óbvio. – As pessoas de lá se vestem mais. Não digo que se vistam necessariamente melhor; as cariocas inventaram uma elegância despojada que é única. As paulistas, porém, levam roupa mais a sério.

O projeto paulista vem sendo tocado simultaneamente com uma aventura inédita mesmo para Marcella, que sempre foi de grandes aventuras: uma espécie de clube, revista e museu de tudo para tablets, chamado Virzionair. Mas, para saber como ela fez a ponte entre a alta costura e a web 2.0, é preciso dar rewind e descobrir os caminhos por onde andou.

Filha de família tradicional, ela decidiu, aos 15 anos, que a vida que tinha não era bem o que queria. Logo estava rodando pela Europa, mochila às costas, descobrindo pedaços do mundo que lhe pareciam muito interessantes. Parou em Amsterdam, ficou uns tempos por lá e, quando fez a primeira pausa para respirar, estava casada e era directrice de um clube gourmet na Sardenha. Uma vida de sonho, que foi boa enquanto durou – mais precisamente, até o dia em que o marido começou a falar em filhos.

-- Foi aí que eu soube que ia voltar para o Brasil, -- lembra Marcella. – Estava com 24 anos, estava me divertindo muito, mas, já naquela altura, eu tinha o sentimento das minhas raízes, uma sensação de pertencimento. É claro que, na época, eu não tinha idéia do que era isso; hoje sei. Mas sabia que não podia ter um filho europeu, uma criança a quem, mais cedo ou mais tarde, eu iria impor o trauma de uma separação.

Separou-se. Mais tarde, já no Brasil, casou-se com o empresário Claudio Klabin, grande amor da sua vida e ótimo amigo até hoje:

-- O Claudio é um homem extremamente culto e refinado, -- diz ela. – Aprendi muito com ele. Sobretudo, aprendi a sedimentar o conhecimento que estava solto na minha cabeça, coisas que tinha pescado aqui e ali, mas com as quais não sabia o que fazer.

Nos anos 90, Marcella era a própria protagonista da novela das nove. Nora de Beki Klabin, eleita por Danuza Leão a representante máxima da jovem elegância carioca, estava em todas e deu festas memoráveis. Sua foto saia, dia sim e outro também, em colunas e revistas. Ela era alta, magra, elegantérrima e inatingível, quase a personagem de si mesma.

 -- Quando você chega num lugar e todo mundo olha para você, você se sente muito responsável pela forma como se apresenta. Eu sempre fui muito dramática, e carregava nessas tintas. Usava roupas que podiam ter saído de um filme, a tal ponto que, anos depois, quando já estava separada do Cláudio, ele me mandou trocar o guarda roupa todo por uns jeans e umas camisetas, porque homem nenhum teria coragem de me abordar naquele luxo todo...

Rimos. A imagem é engraçada mas enganadora, porque, por trás do verniz social de alto brilho, há uma mulher sólida, com uma cultura rica e diversificada, e dona de um apetite intelectual insaciável. Estamos conversando no seu apartamento, que considero um dos mais bonitos do Rio. A sua criatividade está presente nos mínimos detalhes, de uma pipa comprada na Saara funcionando como luminária a antiguidades egípcias e peças de arte contemporâneas. Com menos talento e mais empolgação, esse mix seria um desastre; mas Marcella tem o raro dom de saber parar.

Seu caminho para as passarelas foi natural. De volta ao Rio, começou a ajudar as produções de amigos fotógrafos; insatisfeita com as roupas que encontrava, começou a fazer as suas próprias. O resto é História, pelo menos no mundo da moda. Marcella criou com um sócio a Mastroianni e Bonaparte, desfez a sociedade, abriu um atelier numa casinha em Ipanema num tempo em que ninguém pensava nisso, foi crescendo, teve duas lojas em shopping e nessa rota teria continuado se o destino não batesse de forma dramática à sua porta: aos 39 anos, foi internada com uma pneumonia causada por uma bactéria resistente a todos os antibióticos. Passou uma semana na UTI, entre a vida e a morte, e salvou-se graças a um remédio experimental enviado dos Estados Unidos.

Passada a fase de convalescença, a Marcella empresária, convencida de que tinha nascido de novo, resolveu tocar os negócios em fogo brando e a vida em chama alta. Engatou um namoro com o fotógrafo Mauro Motta e, um belo dia, inesperadamente, descobriu-se grávida. Antônio Virzi, hoje com quatro anos, nasceu quando a mãe tinha 40.

-- A Marcella que você está vendo aqui começou, mesmo, há cinco anos. Primeiro com a pneumonia, que foi um sinal de alerta, e, logo depois, com o nascimento do Antônio, que foi a melhor coisa que me aconteceu. É impossível ser uma diva proustiana com um bebê ao lado, de modo que busquei, em mim, algum fragmento de Marcella que pudesse se desenvolver como mãe.

A mulher que passava as noites bebendo vinho tinto e lendo Dostoiévski e Sylvia Plath deu lugar à mãe que ouve as mesmas músicas infantis horas a fio; a estilista cuja paleta ia do preto ao preto, passando por todos os tons de preto, deu lugar à que joga com cores ousadas. O próprio apartamento, que reflete o estado de espírito da proprietária, ganhou almofadas lindas, cheias de cores, e um aspecto geral muito alegre.

Simultaneamente, sentindo-se sufocada com a pressão dos negócios, Marcella desmontou tudo, para recomeçar uma nova encarnação da sua grife Virzi – pequena, extremamente artesanal, voltada para menos clientes, e dando, à criadora, mais tempo para Antônio, um pequeno gentleman simpático e elegante como a mãe.

A vida corria tranqüila quando... pois é: mais uma vez o destino, e novamente de forma dramática, veio bater à porta. No final do ano passado, Marcella começou a sentir uma dor que não passava na perna. Recebeu dos médicos um diagnóstico sombrio, com possível ameaça de mutilação. Foi operada às pressas, e despachada pela família para Nova York, onde passou por quatro meses de radioterapia. Passou também por mais uma transformação.

-- Descobri que a vida é agora, -- resume. – A gente sonha com o passado, planeja o futuro, mas vive o dia de hoje. Não dá para adiar planos ou empurrar idéias.

O projeto para tablets é resultado dessa constatação. Marcella busca há tempos uma forma de expressão alternativa à moda. Flertou com o teatro e com a literatura, mas na alta do tratamento, acabou se inscrevendo na New York Film Academy. Não tem pretensões de fazer longas; ao contrário, a idéia é partir para micro-metragens de três minutos, pequenas criações em tempo web. Os filminhos são parte de um projeto maior, que inclui uma quantidade de amigos que têm o que dizer, num mergulho profundo em áreas específicas do Rio, sobretudo arte, design, consumo. Que cidade é essa, que pessoas são essas, que planeta é esse?

É difícil descrever o projeto, misto de revista, blog e imagens, até porque é difícil descrever novas novidades. Marcella ri enquanto apresenta a arte de abertura do Virzionair, que vem desenvolvendo com uma pequena equipe:

-- Não sou tão auto-centrada assim, mas dava para deixar passar esse trocadilho?


(O Globo, Rio, 3.7.2011)